Começaram a amizade quando Zuckerberg achou que deveriam se conhecer.
As afinidades eram muitas, de postagens políticas às trilhas sonoras de filmes. Mas foi a foto de perfil dela que lhe deu coragem para mandar o convite.
Naquele footing virtual, tudo que precisavam era a escolha do melhor ângulo. Mulheres passam pela timeline, homens abordam. Nada de novo, a não ser pela infinita possibilidade de ensaios fotográficos e filtros de i-Phones.
Impromptu era coisa do passado.
O presente dependia dos pacotes de internet.
Na bagagem, o fake e a second life. Agora o vinho da promoção ganhava amantes, o last call for alcohool ficou a critério do freguês, e o drama do espelho foi trocado pela comodidade dos pijamas dos solitários, divorciados e afins.
À larga da carência, o convite foi aceito. Após algumas curtidas e declarações de apoio em postagens dos mais de mil amigos, veio o primeiro inbox.
Em pouco tempo, Otávio e Leila passaram dos diálogos escritos a áudios. Afinidades em alta, nunca se esqueceriam do alívio ao ouvir a voz um do outro. Vozes estão entre o desastre e a fantasia.
O mundo virtual proporcionava uma maneira rápida e segura da aplicação sutil de inúmeros testes de aprovação. A vontade de se conhecerem pessoalmente crescia, mas não forte o suficiente para superar o medo de reprovação dos encontros por vídeo ou tête-a-tête. Precisavam de mais tempo.
Foi numa tarde de sexta-feira, ainda em horário expediente, quando Leila, chateada com o chefe, recorreu ao amigo em busca de conforto.
Ele não estava online, e não esteve nas próximas três horas. Aflita, deixara inúmeras mensagens.
Ele era sempre responsivo, mas havia o acordo de não conversarem enquanto estivessem trabalhando. Precisavam manter a máxima dos independentes.
Sentiu saudades do tempo dos encontros de mãos dadas nos cinemas e sacos enormes de pipoca com refrigerantes.
Seis da tarde, a caneta caiu. Em casa, foi o tempo de tomar um banho rápido e esquentar o gnocchi no micro-ondas, quando enfim Otávio deu as caras no chat:
“Oi, querida! O q houve? Vc me deixou preocupado!”
“Oi, chateação hj no trabalho. Tive uma comunhão com meu chefe! Digo, confusão*...afff... esse corretor”
E assim seguiram com a conversa noite adentro, Leila chorando suas mágoas, Otávio com paciência, elogios e links musicais.
Dia seguinte, logo cedo, retomaram as conversas, compartilhando minuto a minuto. A rotina dos papos passou a lhes dar a segurança do que pensavam ser um relacionamento.
Era hora do almoço. Leila teria que sair para comer qualquer coisa. Celular na mão, buscou algo confortável para vestir. No hábito, olhou-se no espelho. Há tempos não se preocupava com a possibilidade de que um eventual acidente na rua pudesse revelar a calcinha de elástico laceado e pernas não depiladas. As raízes brancas dos cabelos já passavam dos dois dedos. Deu de ombros. Afinal, Otávio estava do outro lado da linha.
O restaurante estava vazio. A pandemia certamente tornara as pessoas ainda mais caseiras e preguiçosas. Ao redor, um ou outro gato pingado. De um lado um senhor, barba por fazer e moletom encolhido. “Efeito lockdown” pensou Leila. Do outro lado, um jovem casal com polegares enlouquecidos, atenciosos aos amigos que ali não estavam.
Leila escolheu uma mesa mais afastada e continuou a conversa com Otávio. Foi interrompida pelo garçom que ajeitava o headphone enquanto acompanhava o youtuber trazendo as últimas do brasileirão.
A conversa pelo chat corria solta. Todo o resto era sem importância.
Quando chegou o pedido, Leila se viu obrigada a dar uma pausa, e como a bateria estava nas últimas, procurou o carregador dentro da bolsa: — Que merda! “Ficou na tomada”.
Apavorada, avisou Otávio e pediu ao garçom que embrulhasse para levar. Sem bateria, saiu voando.
De volta em casa, largou a comida sobre a mesa e correu para dar uma carga no aparelho. E, claro, havia o inbox de Otávio:
“Fica tranquila, querida. Almoce c calma. Estarei por aq. Qdo der responde. Sabe o q pensei? Q estou c uma vontade enorme de te ver. To num restaurante de um amg, Café c Prosa. Conhece? Pensei em te trazer aq. Tá bem vazio, mas é mto agradável. Qdo cheguei n tinha ninguém. Depois chegou um casal, e em seguida uma senhora q se sentou do outro lado, ficou quinze min, e saiu correndo. Deve ter recebido notícia ruim, n desgrudava do cel. Q tal a ideia? Acho q tá na hr de nos darmos essa chance. Pense c carinho. Qdo der me retorna! Amo vc! Bj!”
Leila congelou. Sentou-se e esperou uns minutos para responder à mensagem.
“Oi, lindo! Em casa! S, vamos nos encontrar pessoalmente. N conheço esse restaurante.”
Leila não teve coragem de dizer que estava no mesmo lugar. “Será? O homem de moletom? Me chamou de senhora...”
Marcaram o encontro para o próximo sábado, tempo suficiente para ter os cuidados que há muito não tinha. Marcou depilação, cabelereiro e manicure. Trancou a boca, esperando que o zíper da saia voltasse a fechar.
A ansiedade tornou as conversas ainda mais apaixonadas. Passada a semana, Otávio foi buscá-la: — Você está linda, querida!
Leila respirou com alívio. Ele não a reconhecera.
Otávio também não parecia o mesmo homem do último sábado. Seu scanner lhe mostrava agora um homem bem vestido, barba feita, e sim, para seu alívio... sapatos de qualidade. “Ponto!”
A primeira meia hora do encontro foi mágica, com falas ansiosas, mas de muito carinho. Riram e repetiram as conversas já trocadas via celular. Quando interrompidos pelo garçom que veio lhes servir o Chianti, deu-se um silêncio sepulcral. Otávio aproveitou o desconforto e pediu licença para ir ao toilette. Leila pegou o celular, esquecido por sessenta minutos, e começou a verificar as postagens de amigos. No retorno, Otávio, também já às voltas com o celular: — Você viu a postagem do Luís? Olha os absurdos que ele falou!
— Nossa, acabei de ver! Surtou de vez! Soneca nele!
Rindo e questionando as postagens dos amigos em comum, sem que percebessem, a conversa passou exclusivamente para a ponta dos dedos:
“Acho q vc vai gostar do prato q pedimos, querida”
“Estou amando td! Gozei mto desse vinho. Opps...gostei*! N dou conta desse corretor! Aff..mas olha, to feliz por ter te conhecido”
“Opa, chegou! Q tal fodermos? Eita! Comermos*”
O risoto veio, por fim, a calhar.
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